“AGORA QUE EU SOU PUTA VOCÊ QUER FALAR DE AMOR”: PUTA/VADIA, SIGNOS IDEOLÓGICOS


1.         CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A proposta deste trabalho é a de tentar montar um perfil comportamento da mulher contemporânea e perceber como o discurso musical traduz e representa uma sociedade em que a mulher tem cada vez mais assumido as rédeas de sua vida. Para isso, tomaremos como parâmetro de análise duas canções “Agora virei puta”, interpretada pelo grupo nacional Gaiola das Popozudas, e “Hard out Here”, da compositora britânica Lily Allen em parceria com Greg Kurstin, faremos um contraponto dessas canções com a canção “Ai que saudade de Amélia”, de Mário Lago e Ataúlfo Alves, para podermos montar um panorama da transgressão feminina ao longo do processo histórico de construção da sua identidade.
Contudo, necessário se faz que primeiramente seja traçado um perfil histórico para que compreendamos de que maneira a mulher era vista no contexto familiar, e como aos poucos ela foi ganhando autonomia. Assim, poderemos discutir sobre como essa sinuosa transgressão era vista pelo homem e que tipo de recepção ele tinha ao perceber que a mulher estava a cada momento se desprendendo das amarras machistas impostas pelas sociedades misóginas que começavam a ser superadas por conta da urbanização e da industrialização. Assim, tomaremos como aporte teórico Stuart Mill (2006) que discute sobre a sujeição das mulheres nas sociedades ocidentais, Jaime Blume (2006) que discute sobre as tradições falocêntricas e a supressão da voz da mulher, Simone Beauvoir (1967; 1970) que apresenta como se realiza a relação entre homem e mulher, em que um é visto como o sujeito absoluto e o outro é visto como o subjugado, e as percepções históricas de Mary Del Priore (2005) que mapeia o comportamento da mulher no seio familiar no Brasil ao longo do processo histórico.
Em seguida, a partir dos pensamentos de Bakhtin/Voloshinov (1999) e Terry Eagleton (1997) sobre ideologia, discutiremos como os termos puta e vadia se tornaram signos ideológicos ao representarem uma mulher liberta, absoluta, independente e desprendida dos interditos patriarcais que doravante a faziam negar-se enquanto sujeito de sua identidade.
Por fim, observaremos como as canções dialogam entre si, para assinalar as convergências que comprovam uma modificação do status quo no que tange a posição da mulher na sociedade contemporânea. A partir de uma análise interdiscursiva, entenderemos como se constrói essa “nova mulher”, ideologicamente ressignificada, que embora presa a valores consignados pelos mecanismos de controle paternalistas, afirmou uma nova imagem conseguinte ao comportamento revisado.


2.         AMÉLIA QUE ERA MULHER DE VERDADE?

Retomaremos aqui um dos grandes clássicos do cancioneiro popular brasileiro, “Ai, que saudade de Amélia”, de Mário Lago e Ataúlfo Alves, para montar uma “fotografia” de um instante histórico em que a mulher começava a apresentar sutis manifestações de transgressão dos interditos familiares que a prendiam à labuta do fogão e da pia.
A década de 40, época em que este samba foi lançado, marca um espaço de diversas mudanças no contexto social do mundo, uma vez que é neste momento que começa a se formar uma sociedade de caráter urbano-industrial, e é nesse ambiente de rompimentos que o Samba (gênero musical) começa a se desenvolver no Brasil. E junto com essas manifestações de modificações sociais, a mulher já começava a esboçar um ar de transgressão.
Diferentemente da era colonial em que a sexualidade feminina “manifestava-se sobre vários aspectos, sempre esgueirando-se pelos desvãos de uma sociedade misógina” em que “a mulher podia ser mãe, irmã, filha, religiosa, mas de modo algum amante” (ARAÚJO. 2007, p.73), a década de 40 é marcada pelo rompimento do paradigma da mulher doméstica que não poderia, sob hipótese alguma, se desligar da imagem da mulher do lar, ela deveria ser o que o marido quisesse, nem o desejo sexual ou qualquer outro desejo individual deveria ser manifestado, pois, em relação ao homem, a mulher era o sujeito subalterno.
No entanto, como podemos observar em várias outras canções da época, a mulher começava a apresentar outros caracteres. A imagem de mulher submissa começava a se desconstruir e surgia ali uma nova configuração da mulher no contexto familiar.
Se observarmos a letra da canção de Mário Lago e Ataúlfo Alves, visualizaremos essa mudança de uma maneira mais palpável:

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade de Amélia
Aquilo sim é que era mulher.
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado, dizia:
“meu filho, o que há de se fazer”
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia que era mulher de verdade.

É sobre esse novo perfil feminino que vamos nos debruçar agora. Se observamos com atenção, o discurso do homem nessa canção, é um discurso confessional que revela uma espécie de saudade daquela mulher que se sujeitava a todas as situações em prol do bem estar dele, uma mulher que não tinha identidade nem subjetividade, ela vivia refletida na vida desse homem. Porém, a pesar das imagens domésticas expressas na letra e da própria submissão, a letra da canção revela que esta mulher não existe mais, as personagens agora “correspondem a um padrão não mais existente, um padrão que deixava saudade, deixava um vazio, elas não mais estão” (PRIORE, 2005, p. 270) presentes da maneira como “deveria” ser. Esse novo comportamento incomoda aquele homem que estava acostumado a mandar e ser obedecido.
Então, o destino da dona-de-casa começava a ganhar outros rumos, ela iniciava um processo de afirmação dos seus desejos e se colocava como sujeito de sua identidade, exigia do homem, passava se arrumar e começava a se esquivar dos ditames paternalistas que sempre a prenderam dentro de casa e nunca a deixaram respirar.
Desse modo iniciava-se uma “época de transição e modernização” (PRIORE, 2005, p. 232). Diversas manifestações passaram a ser observadas e a mulher estava dentro deste contexto de transformações. “Os cadernos de receita, nos anos 40/50 do século XX chamados, também, de álbuns de economia doméstica”, por exemplo, “pontuam a inscrição das mulheres no espaço temporal e a história efetiva das relações familiares” (MELLO, 2009, p.1).
O medo de se afirmar e se colocar socialmente, aos poucos, ia sendo extinto, e a mulher passava a ganhar voz e autonomia. Isso causava medo nos homens, pois as tradições falocêntricas que muito vinham suprimindo “a voz da mulher, convertendo-a em um ente passivo” (BLUME, 2006, p. 223.), estavam sendo postas em xeque, e os simbolismos que colocavam o homem como o sujeito positivo e a mulher como o sujeito negativo perdiam força devido a um novo comportamento que “propõe desfazer este sistema falocêntrico”, que estava caindo em declínio naquele momento, com as novas configurações que chamavam “à construção de uma linguagem feminina que rompa com estes esquemas” (BLUME, 2006, p.223) de subjugo e submissão.
É nessa mesma época que a francesa Simone Beauvoir publica, em 1949, o livro “O segundo sexo”, em que ela analisa a situação da mulher na sociedade e como é percebida a relação com o homem na esfera familiar, refletindo os sobre os mitos e fatos que condicionam a mulher nas relações sociais.
Suas reflexões levam a um novo discurso em processo de construção, o discurso feminino começa a ser traçado através das inquietudes das mulheres em relação ao fato de a sociedade desconsiderar a sua autonomia e defini-la relativamente ao homem, num processo em que “a mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 1970, p.10). A mulher passava então, a refletir sobre si e a perceber suas posições em relação ao masculino, e esse novo modo de pensar refletiu em uma reconfiguração do seu comportamento.
É nesse contexto de ebulição comportamental e profusão de novos pensamentos que a “amélia” de Mário Lago e Ataúlfo Alves começa a desaparecer e dar lugar a uma nova mulher que mesmo, ainda, estando presa aos modelos paternalistas, começa a aferir e afirmar uma nova identidade a partir de uma reflexão sobre o seu posicionamento na sociedade e na relação familiar.
Entendemos, então, que o termo, “amélia” configura-se como um signo ideológico, formado por discursos que representaram a mulher pelos estereótipos formulados a partir de um contexto social que a via como um sujeito subjugado às vontades do homem.
É na reconfiguração do comportamento da mulher que a acepção desse termo entra em declínio e fica no passado, a “amélia” de Mário Lago e Ataúlfo Alves cristaliza-se num passado que a engessa e a torna referência contrária, servindo apenas como contraposição para um comportamento não mais aceito – pelo menos em discurso – pela sociedade contemporânea.
Seguindo a evolução social no tocante ao comportamento da mulher, a arte se apropria desse discurso de libertação traz para o cenário mulher musical a voz da mulher, aquela que antes era circunscrita pela ótica masculina, ganha voz e espaço em contextos dantes nunca alocados por elas.

2.1. MINHA BUCETA É O PODER: AS MULHERES DO FUNK

E nesse contexto de subversão de pensamentos que o funk carioca surge como pano de fundo dessas novas configurações comportamentais que dão a mulher o poder da contestação e reinvindicação de seu espaço.

“O movimento funk surge no Rio de Janeiro na década de 1980. Bastante influenciado pelo ritmo que vinha da Flórida, o Miami Bass, o funk ganha espaço nas periferias cariocas através dos bailes realizados nos clubes dos bairros das periferias da capital e região metropolitana. [...] No início dos anos 1990, pode-se dizer que houve a consolidação do funk como música eletrônica brasileira/carioca. [...] Com letras antiviolência, os festivais e bailes de meados dos anos 1990 tinham como objetivo a união dos DJs e MCs para lutarem contra a violência nos bailes. Nesse período, a grande maioria das letras falava sobre a necessidade de se combater a violência nas festas de funk para que os bailes pudessem continuar sendo uma forma de diversão para a população das favelas e periferias. No final dos anos 1990, surgem também os proibidões, músicas com temas ligados ao tráfico de drogas e às facções ou com forte conotação sexual. São chamados proibidões pois são tocadas, geralmente, nos bailes de favela; na maioria das vezes, a mesma música ganha uma versão mais “leve” (chamada de versão light pelos MCs) para ser tocada fora do ambiente de favela. O chamado funk putaria ou funk sensual ganhou espaço dentro e fora das comunidades, trazendo à tona temas relacionados à mulher, sensualidade e sexualidade.” (CAETANO, 2010, p. 7-8)

Subversivo, ambíguo e marginalizado, o funk carioca vai conquistando ao longo do anos 90 espaço na mídia e dando voz a comunidade, seguindo esse processo, a mulher da comunidade começa a ganhar voz e espaço em contexto doravante predominantemente masculinos, é válido ressaltar que “as mulheres não protagonizam mulheres não protagonizam quase nenhum ambiente musical/cultural relacionado à cultura das ruas” (CAETANO, 2010, p.9), e muitas vezes alocam contextos que são, muitas vezes, estigmatizados pelos conceitos de alta ou baixa cultura, em que, ambiente mais elitistas como a chama MPB representam a alta cultura, e os movimentos mais periféricos como o funk e/ou o hip hop são associados à conceitos de baixa cultura, talvez pela origem marginalizada dos seus protagonistas ou por conceitos estigmatizados de cultura.
            É nos anos 2000 que surgem as primeiras MCs, com suas letras irreverentes e, muitas vezes, mal compreendidas pela sociedade brasileira, representantes do proibidão, Tati Quebra-Barraco e Deise Tigrona inauguram uma nova vertente no funk carioca, o proibidão feito por mulheres. Em suas letras, a representação de sujeitos que assumem sua identidade enquanto sujeito atuante na sociedade, o reflexo de mulheres que assumem sua sexualidade, a vivenciam com efetividade e não se reprimem ao falar sobre sexo, rompendo tabus, essas mulheres assumem o papel de protagonistas de suas vidas e se posicionam com indivíduos que defendem sua autonomia, que têm escolhas próprias, surgem então as mulheres sinestésicas, aquelas que conhecem o seu corpo e não reprimem o direito do prazer sexual. São as cachorras, as frutas, as popozudas, as putas e as vadias, que ressignificam conceitos próprios do machismo para subverterem esse discurso e gerar pensamento, ecoa, a partir delas, uma grito de libertação do feminino reprimido.

3. “LATE, QUE EU TÔ PASSANDO”: PUTA E VADIA, SIGNOS IDEOLÓGICOS

Para Bakhtin/Voloshinov (1999), a ideologia é vista pelo viés marxista da luta de classes, assim, a ideologia é dividida em duas compreensões que a interpreta pelo perfil de estruturas denominadas superestrutura e infraestrutura, a primeira representada pela ideologia compreendida como a dominante, logo sua estrutura e seu conteúdo são relativamente estáveis, denominada ideologia oficial, a segunda é “construída pelos encontros casuais e fortuitos”, compreendida como a ideologia do cotidiano, por isso relativamente instável. Percebe-se, então, que entre esses dois conceitos de ideologia, há uma relação dialética, que cria assim, um sistema complexo que põe de um lado a ideologia oficial, e por isso idealizada por ser a ideologia capitalista, que deve responder a conceitos e pensamentos pré-estabelecidos socialmente, e do outro a ideologia do cotidiano entendida como um acontecimento que brota das relações sociais de produção e reprodução da vida (MIOTELLO, 2005, p. 168-169).
Para Terry Eagleton:

“ideologia é mais uma questão de ‘discurso’ que de ‘linguagem’. Isto diz respeito aos usos efetivos da linguagem entre determinados sujeitos humanos para a produção de efeitos específicos. Não se pode decidir se um enunciado é ideológico ou não examinando-o isoladamente de seu contexto discursivo, assim como não se pode decidir, da mesma maneira, se um fragmento de escrita é uma obra de arte literária. A ideologia tem mais a ver com a questão de quem está falando o quê, com quem e com que finalidade do que as propriedades lingüísticas (SIC.) inerentes de um pronunciamento.” (EAGLETON, 1997, p.22)

            Percebendo a ideologia como uma questão de discurso, e por isso uma função de forças sociais, determinada por relações dialógicas e construída de ecos de vários discursos, Eagleton dialoga com o pensamento bakhtiniano, uma vez que compreende a ideologia como um complexo de contextos discursivos, logo, um resultado de relações sócio-históricas que convergem para uma teia de relações sociais que atribuem valores a objetos, trazendo para estes, significados inerentes a determinados grupos, logo, a um signo não pode ser atribuído um único sentido, uma vez que são frutos de lugares valorativos, esses valores atribuídos formam o que Bakhtin denomina de conjunto de signos, o signo neste sentido ganha o seu valor ideológico. “A palavra ‘ideologia’ é, por assim dizer, um texto, tecido com uma trama de diferentes fios conceituais (EAGLETON, 1997, p.15).”
Compreendendo a ideologia por esse valor dialético e dialógico, Bakhtin/Voloshinov (1999) ainda discute sobre o valor ideológico do signo, este percebido como um “produto” de fazeres sociais, uma vez que observa “cada época e cada grupo social têm seu repertório de forma de discurso na comunicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1999, p.40). Desse modo o signo é carregado de vários discursos, por isso polifônico, e formado por significados valorativos, ou seja, a um determinado signo, um grupo social atribui um significado próprio e carregado de valores singulares para aquele grupo, além do sentido oficial daquele signo, existe o sentido/valor atribuído pelo grupo que o determinou, logo o signo pertence a um complexo ideológico, neste sentido é um signo ideológico.
            Se debruçarmo-nos sobre os termos puta e vadia, na acepção mais comum desses vocábulos, nos deparemos com conceitos já cristalizados para suas definições, muitas vezes, calcados em noções machistas e misóginas, que colocam no âmbito do tabu a sexualidade feminina. Puta e vadia é aquela mulher que se veste de maneira não aceita pela sociedade como descente – roupas curtas, decotes, maquiagem pesada, etc. –, é a mulher com uma vida sexual ativa fora do casamento – o que já nos remete a um discurso próprio do cristianismo –, é a mulher que é mãe solteira, é a mulher que trabalha fora de casa, é a mulher que separa do marido, é a mulher viúva que se casa novamente, a mulher jovem que beija mais de um homem em uma festa, é a mulher que fala sobre sexo nas redes sócias,  e por aí podemos elencar dezenas de estereótipos que são socialmente associados à puta ou à vadia.
            No entanto, todos esses conceitos estão imbuídos de memórias discursivas que reverberam ideologias muitas vezes associadas ao machismo e ao tabu sexual, a ideologia religiosa também permeia a acepção desses conceitos, o processo histórico também é responsável pela construção desses pensamentos, então, podemos afirmar que os termos puta e vadia estão impregnados ideologias que os definem e alocam socialmente, o que corrobora com o pensamento de Bakhtin/Voloshinov sobre a palavra, uma vez que esta “penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1999, p.39).

As definições conhecidas para tais termo são fruto desse emaranhado discursivo, polifônico, que têm sua origem nas diversas relações entre sujeitos sociais, por isso, os valores atribuídos a esses termos, refletem os estereótipos de um tipo social representante da dominação masculina sobre a mulher. Uma vez que esses signos são produto de uma relação dialética em que neles “coexistem contradições ideológico-sociais entre o passado e o presente, entre as várias épocas do passado e os vários grupos do presente, entre os futuros possíveis e contraditórios (MIOTELLO, 2005, p. 172)”.
Desse modo, a ideologia oficial, que recai sobre esses termos, é a que define a mulher como o sujeito inferior da relação, por isso uma nova configuração do comportamento feminino causa estranheza para aquele homem que, consignado pelos valores paternalistas, não consegue entender a mulher como um sujeito igualitário na relação conjugal. Assim, essa ideologia oficial se torna o meio pelo qual as identificações determinam “puta” e “vadia” enquanto signos ideológicos.
É percebendo esse valor ideológico do termo – intuitivamente ou não – que Valesca Popozuda e Lily Allen tentam trazer para discussão os novos valores que essas palavras ganham no século XXI, em que a mulher se coloca cada vez mais como sujeito de sua identidade, e tenta agregar diversas funções que a colocam numa posição contrária à da “amélia” de Mário Lago e Ataúlfo Alves.
A proposta das canções “Agora virei puta” e “Hard out Here” é, claramente, a de fazer um diálogo direto com as novas configurações dos termos nas sociedades contemporâneas, em que a mulher assume de fato suas diversas e divergentes identidades, tentando perfilar uma nova imagem da mulher que tenta assumir uma nova imagem parente os valores contemporâneos que aceitam que a mulher assuma funções que antes eram vistas apenas como funções masculinas.
Essa reconfiguração das relações sociais reflete na construção de um novo discurso, em que a mulher pode se colocar como um sujeito atuante no seio social e familiar.
Em sua canção a cantora Lily Allen inicia uma reflexão:

“Creio que eu vou lhe dizer o que essa vadia está pensando / você vai me achar no estúdio e não na cozinha / eu não vou estar me gabando dos meus carros / ou falando das minhas correntes / não preciso sacudir minha bunda para você / pois eu tenho cérebro / se eu te contasse sobre minha vida sexual / você me chamaria de puta / quando os garotos falam sobre suas vadias / ninguém cria caso / há uma barreira invisível para quebrar [...]”
           
Já na primeira estrofe, a compositora coloca em questão a segregação social feita entra as posições de homens e mulheres na sociedade, a mulher que deveria estar na cozinha – na visão falocêntrica – agora assume o mercado de trabalho (aludido, aqui, pela estúdio musical), mas o que mais chama a atenção é a posição que o eu-lírico assume, a de vadia (“creio que vou lhe dizer o que essa vadia está pensando), isso porque, uma vez que a mulher liberta e independente é vista socialmente como vadia, Lily Allen assume essa posição sem se prender aos tabus que o termos poderia reafirma, pelo contrário, ela ressignifica o termo, o que antes representava uma mulher, digamos, vulgar e à margem da sociedade, agora representa uma mulher autônoma, o que se reafirma com o verso “se eu te contasse sobre minha vida sexual, você me chamaria de puta”, ou seja, a partir do momento que ela se assume enquanto um sujeito que não oblitera o prazer sexual casual ela pode ser chamada de puta, porém, o termo, nesse contexto não tem mais um valor pejorativo, pois se “quando garotos falam de suas vadias, ninguém cria caso”, por que deveriam criar caso quando uma mulher fala dos homens com quem transa? Então ela dá o grito de libertação dizendo que “há uma barreira invisível a ser quebrada”, a barreira da misoginia e do falocentrismo que há muito vinha reprimindo a mulher e sua singularidade.
Barreira essa, também quebrada por Valesca Popozuda em “Agora virei puta”, com uma letra de engajamento social, Valesca traz à tona a realidade da mulher da periferia no contexto familiar, denunciando a violência doméstica e clamando pela libertação daquelas mulheres, que, ainda imbuídas por conceitos machistas e misóginos, aceitam apanhar do marido que as têm como propriedade privada, evocando o pensamento de Simone de Beavoir, que em seu “Segundo Sexo” discute sobre a posição da mulher como o Outro na relação conjugal, enquanto o homem é o Um, o absoluto. A mulher dessa vez, passar a ser absoluta de si e não teme deixar o homem que a espanca para vivenciar um novo contexto em sua vida:

Só me dava porrada!
E partia pra farra!
Eu ficava sozinha, esperando você
Eu gritava e chorava que nem uma maluca...
Valeu muito obrigado mas agora virei puta!




A denúncia social surge como grito de libertação de uma mulher que ainda estava pesa aos padrões paternalistas de casamento, comportamento e posição social, aquela que antes era “amélia”, que vivia pra casa, pra cuidar de uma marido que a espancava e a deixava sozinha em casa para sair à noite enquanto ela esperava docilmente, é substituída pela puta, e, mais uma vez, o termo o ressignificado, essa não é a puta enquanto sinônimo para prostituta ou despudorada, mas é o sinônimo de uma mulher que não mais aceita ser subjugada, que vai buscar na independência o meio de sua sobrevivência, sem a necessidade de ser posta na posição de outro, “hoje ela é um também”, como diria Pitty em sua desconstrução da “amélia”. Seguindo esse mesmo percurso de desconstrução, Valesca continua:

Se um tapinha não dói
Eu falo pra você
Segura esse chifre, quero ver tu se fuder
Eu lavava, passava
Tu não dava valor
Agora que eu sou puta você que falar de amor
           
Evocando um clássico do funk carioca dos anos 1990 “Um tapinha não dói”, metalinguísticamente, Popozuda leva sua crítica ao próprio funk, questionando o discursos sexista do Bonde do Tigrão que dizia que um “tampinha não dói”, e como alusão do seu grito de libertação, o chifre surge como meio pelo qual ela faz aquele homem sentir o quanto ela sofreu quando estava ao lado dele, não é uma discussão que fica apenas no âmbito da traição como vingança, mas evoca um sentido de liberdade, em que essa mulher pode escolher por outro homem que a faça feliz que a trate como ser humano, e ao perceber que essa mulher está liberta dele, como é comum acontecer nesse tipo de relação, o homem tenta reconciliar sua relação com ela, mas agora que ela se libertou dela, suas palavras de “amor” não valem mais de nada, pois ela sabe, que se voltar para ele, corre o risco de sofrer novamente com a violência doméstica.
Se para esse homem ser puta é ser independente, essa mulher assume o papel de “puta” e se liberta dos pressupostos que a tolhiam enquanto indivíduo. Então voltamos a Lily Allen e sua reflexão acerca da posição dessa mulher liberta e libertária na sociedade:

Às vezes é difícil encontrar palavras pra dizer
Eu vou em frente e as digo de qualquer maneira
Esqueça seus colhões e crie um par de peitos
É difícil, é difícil
É difícil aqui fora para uma vadia, é difícil

E novamente o termo vadia é retomado de forma ressignificada, por mais que seja difícil conviver em uma sociedade que a reprime, ela não desiste e segue firme em sua causa, mesmo sendo difícil se livre, ela assume suas identidades de qualquer maneira, aferindo e afirmando sua singularidade ante contextos que vilipendiam sua posição enquanto sujeito de sua identidade. Então, ela segue questionando os pressupostos sociais que determinam o comportamento e o corpo da mulher:

Se você não é tamanho 34
Você não é bonita
Bem, é melhor você ser rica
Ou ser muito boa na cozinha
Você provavelmente deveria perder um pouco de peso
Porque não dá pra ver seus ossos
Você provavelmente deveria corrigir o rosto
Ou vai acabar sozinha

Lily Allen, critica então, uma sociedade que vive para o consumo, que corre incessantemente para cumprir metas de mercado, do capitalismo, da indústria, da moda, ideologicamente constituída pela sociedade de consumo, aquela que transforma a mulher em máquina para prover as necessidades mercadológicas, transformando-as em “bonecas de vitrine”, todas iguais umas às outras.
No entanto, nesse novo contexto elas lutam para não serem refreadas, anuladas, coisificadas por um sistema que teima em reproduzir pressupostos falocêntricos:

Você não quer ter alguém que te objetifica?
Você já pensou na sua bunda?
Quem vai parti-la em dois?
Nunca estivemos tão bem
Nós estamos fora de perigo
E se você não consegue identificar o sarcasmo
Então você entendeu mal

A reapropriação e ressignificação desses termos, inaugura uma renovação ideológica, em que a mulher assume as rédeas de sua vida e assume enquanto indivíduo com vontades própria, independente de uma figura masculina e paternal para comandar suas atitudes, escolhas e comportamentos, talvez isso assuste mesmo uma sociedade já acostumada com o machismo vigente, no entanto, toda mudança se inicia com a luta de sujeitos que se expõem por um bem maior, é por meios das putas, vadias, popozudas, frutas, cachorras e tchutchucas que o grito de libertação da mulher – pincipalmente a marginalizada da periferia – está ecoando e incomodando os ouvidos de muita gente ainda impregnada de conceitos ultrapassados, esdrúxulos e anacrônicos, “é difícil aqui fora para uma vadia”, mas elas estão ultrapassando essas barreiras desmistificando os pressupostos do sexo frágil.

5.         CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho não tem a pretensão de definir quem é essa “nova mulher” que começa a ser desenhada nos novos discursos que a têm como centro, pois, como a cantora Pitty disse em entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura em setembro de 2009, não é em poucas linhas ou em uma canção que se define quem é essa mulher. A proposta desse trabalho é abrir a discussão, sobre como ela se posiciona na contemporaneidade, montar um dos vários perfis que essa mulher apresenta.
Fruto de um emaranhado ideológico-discursivo os termos oriundo do funk, bem como de outras vertentes musicais periféricas como o hip-hop, são um rico objeto de discussão e reflexão sobre status da mulher nos dias de hoje.
As canções de Valesca Popozuda e Lily Allen, sugerem uma nova configuração da mulher que se preocupa com seus afazeres domésticos, mas que não deixa de se colocar enquanto sujeito de suas escolhas. O discurso é revisado, pois as relações sociais são outras, as bases ideológicas são outras e os signos adquirem novos valores perante esse comportamento revisado.
A mulher contemporânea precisa agregar às atividade domésticas tempo para cuidar de si, do corpo e de sua mente, se colocando em um novo contexto sócio-histórico, que traz à tona outras vozes para congregar novos discursos.
É de se perceber que “antes a mulher era explicada pelo homem. [...] Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica” (TELLES, 2007, p.671), e isso contribui para o início da construção de um novo discurso, o discurso feminino, por tantos anos calado e relegado aos empoeirados cadernos de receita e diários pessoais, em que essas mulheres buscavam um refúgio para escoar seus pensamentos e desejos, mas que permaneciam guardados no fundo de baús velhos e mofados. Hoje esses baús não existem mais, e elas podem se fazer ouvir, e acima de tudo, hoje elas podem se colocar enquanto Sujeito Mulher.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. – 4. ed. – São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
BLUME, Jaime. La critica literaria del Siglo XX: 50 modelos y su aplicación. Santiago: Universidad Católica de Chile, 2006.
CAETANO, Mariana Gomes. Melancia, moranguinho e melão. Fruta tá na feira. A representação feminina do funk em jornais populares do Rio de Janeiro: estigma, indústria cultural e identidade. Universidade Federal Fluminense. Departamento de Estudos Culturais e Mídia. Niterói: 2010. Disponível em: http://marivedder.files.wordpress.com/2013/04/marianagomescaetano_tcc.pdf. Acesso em: 08 de abril de 2014.
DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. – 2. ed. – São Paulo: Contexto, 2006.
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LAGO, Mário; ALVES, Ataulpho. CD 90 anos, Ai, que saudade de Amélia, faixa 14, da obra de Mário Lago, composição de Mário Lago e Ataulpho Alves. São Paulo–SP: Revivendo, 2003.
MELLO, Beliza Áurea de Arruda. Cartografias dos cadernos de receitas: volúpia banho maria. 5º Colóquio Nacional de Representações de gênero e de Sexualidades e I Simpósio Nacional de Psicologia e Crítica da Cultura. Org.: (Antônio de Pádua Dias da Silva, Maria Goretti Ribeiro, Myrna Agra Maracajá). Campina Grande: Realize Editora, 2009. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.
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MIOTELLO, Valdemir. Ideologia. In: Bakhtin: conceitos chaves. Beth Brait, (org.). – São Paulo: Contexto 2005.
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2 comentários:

  1. O caro Egberto bem deve conhecer minha atuação enquanto provocador nesses espaços tão diversos em opiniões que são as redes sociais assim como talvez desconfie de minhas posições (talvez conservadoras) acerca dos "símbolos" analisados em seu artigo.

    Não obstante o fato de minhas preocupações e críticas residirem no impacto dos discursos ali elencados no insconsciente coletivo, sinto-me de fato capturado pela pertinência de suas colocações em forma tal que lanço-me à uma breve reavaliação de algumas de minhas verdades.

    Redundante apontar a legitimidade das lutas e reivindicações da mulher por direitos que o homem, do alto de sua arrogência fálica, sempre ostentou naturalmente e que talvez tenham feito da história humana um extenso relato de desastres e equívocos, para se dizer o mínimo.

    Suas ponderações vão ao encontro de uma nova opinião que já formulava: não se pode, ou ao menos não se poderia, rechaçar anseios que a sociedade está disposta a custear pelos mecanismos que bem julgar adequados.

    O redesenho dos novos papeis da mulher no contexto histórico exige essa quebra de paradigmas e está fadado aos eventuais enganos que fazem parte de qualquer processo de transformação, de movimento, de transição.

    Entre erros e acertos espera-se que sobrevenha uma nova mulher e uma nova sociedade que possa fazer uma leitura adequada dos símbolos e valores abordados em seu texto sem jamais perder a perspectiva da dignidade humana.

    Há um longo caminho à frente e o amigo bem sabe de minha postura sarcástica no tocante ao nosso processo evolutivo enquanto civilização.

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    1. Muito bons seus apontamentos e bastante coerentes, muito obrigado pela atenção e pela leitura analítica do meu texto.

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