Tendo
a sua primeira edição lançada em 1999, A
casa dos budas ditosos é uma obra escrita pelo brasileiro João Ubaldo
Ribeiro e é parte integrante da coleção Plenos Pecados (Editora Objetiva), que
compendia sete volumes – escritos por autores diversos – e que tratam dos setes
pecados capitais, sendo este o texto que representa o pecado da luxúria.
Logo
em suas primeiras páginas, o autor já desperta a curiosidade do leitor ao
afirmar, em uma “nota prefacial”, que o relato que irá se seguir nada mais é do
que uma transcrição de um material gravado em fitas K7 que recebera um ano
antes da publicação do livro.
Segundo
a nota, os originais de A casa dos budas
ditosos chegaram ao escritor por um desconhecido, que deixara na portaria
do edifício onde o autor trabalhava, um pacote com um bilhete assinado com a
inicias CLB, uma senhora de 68 anos de idade, baiana, porém radicada no Rio de
Janeiro, que decidira relatar suas mais
diversas experiências sexuais antes morrer e que aproveitara o ensejo daquela futura publicação, anunciada
nos jornais do Brasil, para mandar o seu relato ao autor que poderia publicá-lo
assinado por ele mesmo.
Se
esta informação é real, bem como a existência de CLB, ou é uma brincadeira do
autor com os seus leitores, jamais iremos descobrir, mas podemos afirmar que
João Ubaldo se utilizou desse artifício para confundir o leitor sobre a real
autoria do texto e que este é um ponto bem instigante na obra, que de tão
escancarada no tocante aos relatos sobre a vida da sua narradora, merecia ter
um “quê” de mistério para deixar a curiosidade do leitor tomar conta da
narrativa.
E
falando na narradora, tocamos no ponto mais importante desta narrativa, uma vez
todo romance é narrado em primeira pessoa, seguindo um tom de relato
confessional, não que CLB precise assumir a postura de alguém que está
confessando pela primeira vez vivências ocultas, pelo contrário, ela nos deixa
bem claro que tudo o que é descrito foi vivido abertamente por um mulher livre,
libertina e libertária, em momento algum o monólogo da nossa protagonista
revela puritanismos ou receios, lemos
nas páginas “dos budas ditosos” o relato divertido, sexy, excitante, às vezes
chocante (para aqueles com mais interditos sexuais) e libertador de uma mulher plena de seu corpo e
de sua sexualidade.
A
luxúria dessa baiana sexagenária perpassa os mais diversos meandros em que o
prazer pode percorrer, são descritas relações sexuais incestuosas,
homoafetivas, grupais, sadistas, masoquistas, masturbações e experiências que
quase beiram a zoofilia, tudo vivenciado por uma mulher que tem domínio do seu
corpo e de suas vontades e que se entende enquanto sujeito de sua identidade.
Então,
o leitor pode esperar para se deleitar libidinalmente por páginas que relatam
desde as primeiras experiências sexuais de uma menina que está entrando na
puberdade e descobrindo os caminhos prazerosos que o toque pode proporcionar em
seu corpo, aos relatos mais picantes de uma jovem que roda o mundo conhecendo o
sexo por meio das mais diversas experiências lascívias que vive com homens e
mulheres com os quais resolve experienciar suas fantasias hedonistas – não importando
se está com um desconhecido, um amigo ou uma amiga, com o tio, o primo ou o
irmão –, até chegar no relato final de uma
mulher idosa que se entende completa por nunca ter negado de si o prazer
de satisfazer as vontades do seu corpo.
No
entanto, o livro não se mantém apenas no relato sexual de CLB, ele está
recheado de passagens jocosas, pastiches, críticas e sarcasmos que colocam em
questão pensamentos, comportamentos e posições machistas e misóginas.
Por
meio de sua narradora, João Ubaldo Ribeiro colocou em relevo uma discussão que
vinha ganhando força no final do século XX e nos apresenta uma mulher que, por
meio de sua vida libertária, luta e serve de exemplo para mostrar que o
feminismo não é um movimento que apregoa a hegemonia feminina em detrimento do masculino,
ilustra que esta é uma luta que fomenta a obtenção de equidade, de direitos
igualitários, de liberdade da mulher escolher viver e ser quem é, de poder satisfazer-se
como bem entender e com quem bem entender, sem o crivo de pressupostos
patriarcais que determinariam a sua forma de agir, podemos dizer que a
narradora de A casa dos budas ditosos
é uma mulher feminista por excelência.
Porém,
é interessante ponderarmos sobre um dado interessante na fala dessa narradora,
por mais que João Ubaldo assinale que o texto não passa de uma transcrição do
material enviado pela suposta CLB, em alguns momentos a narração entrega que o
texto pode ter sido realmente escrito por um homem, por mais que o autor tenha
conseguido representar uma identidade bem feminina com a sua protagonista, em
alguns momentos o enunciado pode revelar
um ethos masculino por trás das descrições de algumas fantasias, o que
foi percebido por algumas mulheres e, de certa forma, incomodou algumas
leitoras.
Como
na minha leitura eu também eu tinha percebido que algumas cenas me soavam meio
que fantasia sexual de homem, eu decidi procurar algumas resenhas escritas por
mulheres e encontrei o texto “Erotismo e humor na casa dos budas ditosos”, de
Rafaela Paludo, do blog Chovendo Livros, em que ela relata o seguinte:
“[...] fica no ar a dúvida sobre quem é o narrador
verdadeiro: CLB realmente existiu ou João Ubaldo Ribeiro encarnou a personagem?
Apesar do discurso aparentemente feminista e libertador de A casa dos Budas ditosos, as coisas que deixam CLB excitada às vezes parecem
coisas que um homem acharia que deixam uma mulher excitada. Isso me incomodou
em alguns momentos, mas consegui relevar depois de uma certa parte”.
Porém, como ela mesma deixa implícito,
estas “escorregadas” não comprometem o discurso feminista e libertador da obra,
João Ubaldo realmente pode ter conseguido, enquanto homem, aparentar
sensibilidade tamanha para “falar por/sobre uma mulher”, ou pelo menos para conseguir
despir-se de seus machismos e transcrever ou, até mesmo, parafrasear um texto
escrito por ela, esta dúvida sobre a real autoria é que deixa esse livro inquietante.
Então, por mais que a narrativa
apresente uma reflexão interessante sobre algumas questões de relevância na
sociedade, do ponto de vista estético o texto não possui construções estilísticas
de difícil compreensão, não há a presença de um discurso mais rebuscado ou a
tentativa de se fazer uma obra com requintes literários, até porque ele deixa
bem claro desde o seu primeiro parágrafo que aquilo se trata de um relato oral
transcrito para o papel, então a presença da oralidade, de mecanismos de
conversação e de uma linguagem mais coloquial marcam bastante as falas da personagem,
o que torna a narrativa muito flúida e muito agradável, é um texto... como eu
poderia dizer... de um humor “gozante”.
Como eu não conheço outras obras de
João Ubaldo Ribeiro, não tenho como fazer um paralelo com outros textos seus,
não conseguiria dizer a vocês se este é o pior ou o melhor livro publicado pelo
autor, pois foi o primeiro de seu repertório que eu li, porém, posso dizer que
é uma leitura satisfatória, que não se prende a clichês e relatos absurdos e
fora da realidade, não esperem um Cinquenta
tons de cinza, ele vai muito além daquela “pera, uva, maçã, salada-mista”...
A casa dos budas
ditosos ultrapassa, e muito, a superficialidade
de diversos textos eróticos que se evaporam ora em doçuras monocromáticas ora
em venenos de escorpião.
Egberto
Vital
18
de julho de 2017
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